PARECE VINICIUS
*em homenagem ao bilhete de boal para toquinho que encontrei numa amarelada edição de TECNICAS LATINOAMERICANAS DE TEATRO POPULAR (Una revolucion Copernicana ao revés) achado de extraordinária rede de afectos e interlocuções dado que aconteceu na vida real, um sebo imaginário qualquer em São Paulo*
Este é o momento máximo de existência durante minha permanência como hóspede da Comuna Gourmet, minha primeira morada como homem independente, paripasso com outro peripatético amigo ateu militante glbts, Hugo. Esta é a página número mar de um diário nunca acontecido. Este é o dia número círio, no mar de gentes barrentas que parecem de rio, este rio que é mar e afugenta os corpos exaustos do olho d`água, jalam digo, falam do que esperam, esta paz impossível dos interiores (os íntimos, de cada pessoa e os do Estado do Pará). Eu falo desta verdade indizível, esse oxímoro da identidade que é ser personagem de si mesmo ao observar a história e perceber seus vetores. Seu imanente curso. Eu posso observar e amar meu querido irmão aventureiro, Hugo, que é ameaçado de morte, ou ver o filho do Feliciano fazer sete dias, viva, Hugo, viva, Feliciano, essa nossa senzala de sermos as pedras -ou pedros- iniciais. De uma sociedade machista. Ah, é que eu percebi aqui no auge dos meus vinte e sete anos que toda a existência possui um instante efêmero de eternidade, e que nele se dissipa. E é essa percepção alada -Apolo me visitou, meu caro amigo Ricardo, e ele manda lembranças, à você e à toda a juventude intelectual- essa percepção alada como os brincos de asas de aço que adornavam as orelhas de uma jovem que brincava comigo, (alou, Julia, sinto sua falta!) essa sensação me faz inferir que há um instante efêmero e fabuloso de realidade e que nele… atravessamos. Travessia. Hóspede imortal. de ti? Hóspede imortal, querida Gabi, como você que nos visita, estrangeira entre tantas sínteses e me convidando a perceber como estrangeiro esta limitada tessitura que quase se desfaz em nuvem ao traduzir-se como a dramaturgia do instante que não é teatro. Esta fábula -ou teatro de sombras, Gilberto?- é um pequeno portal sombrio que nos faz atravessar a cultura: o resto é silêncio. Esta é uma carta suicida, meu caro Yoko: so-wer-ther! Esta é uma carta suicida do tempo e da farsa, porém nascitura da erva e da carne, tem cheiro de flores e de capim e de éter como os cabelos de Larissa e de Layse. Os enigmas que envolvem tudo escorrem pelo espaço em que também me diluo, entre tuas pernas, digo, teu envelhecer, tu, que desnuda de Mirian te tornaste Maria, Nossa Senhora última entre todas as donzelas, tu dulcineia, eu quixote entre psicotrópicos, a seguir a pensar sem pensar em ti “sem pensar, nem pensar!” como diz o disco do falecido de câncer, é tanta dor e logo tu vens, câncer quarta-feira de cinzas de véus tristes em que infelizmente o Círio se encerrar e tu, Milton, te deitarás em teu querido paraíso perdido de câncer (e de outros males que teimam em violentar os velhos brasileiros brasil afora desde os negros meus avôs- determinação social da senzala saúde logo aprende a ler) ou melhor, tu, Milton, que existes mas que existes para mais de ti, tu que nem sabes que em ti penso e que choro tua possível (inevitável para todos, claro, sem dramas) porém tua morte de flores. És tu e é por ti o meu canto, eu que me diluo na cultura e que hoje atravesso criança, eu cirandeio por ti. Povo, Ave! DEUSAPRENDER! DEUSOBEDECER! DEUSAPARECER! Ave, Vitor Pordeus, esta carta de infinito suicídio e incêndio também é pra ti, que vais aí a passar frio no Canadá sonhando em incêndios tão tropicais de ideias e versos à ray lima, junio santos e vera dantas, ditos assim sem maiúsculo porque já pertencem ao campo dos saberes eternos. Os dissabores eternos. Este efêmero instante de cultura em que me perco, demovido de mim, do teatro de roupas e de escândalos. Esta é minha vaidade dizendo, “oi, Sérgio!” (e sérgio é meu analista, sabe-se lá o que vai pensar de mim depois de ler este meu bilhete suicida). Meu bilhete suicida para a cultura, viu, Mãe, eu não vou me matar! Eu amo demais a vida. Preocupe-se mais com a Luenne e a vovó, que andam precisando. Meu bilhete suicida para o povo, que anda precisando de suicídios para salvar-se. O povo, Milton, o povo! O povo, Carlos, querido palhaço, quase Marighella peripatético a bailar nos manicômios maquiados da vida circense- ou cerceada?- da vida normalizada. Deus é tecnologia da mesma natureza das drogas. Eu aqui me vejo militante da redução de danos e da luta antimanicomial. Lutando por deus. Eu penso, e com isso quero dizer que estou penso mesmo, pendendo para um lado, no equilíbrio do desequilibrio, eu estou palhaço por ti povo e contigo sonha ao meu lado um menino ateu em nossa frágil Comuna Gourmet (jóia de terrorismo infante na tessitura do adulto) e junta-se a nossos cafés e nuvens todo o povo da América Latina sintetizado no Círio, esta marcha dionisíaca pela euforia, esta mandala cósmica do povo e para o povo. Aqui me despeço. Não vejo a hora de mostrar esta carta para o Barata avaliar. Acho que vais gostar! Endereço a ti, querido professor old-queer-ultra-romântico, minha primeira carta suicida: até parece Vinicius.
-e há também os amigos que não couberam na síntese salve salve brunos gabrieis charles filhos da maravilha patchoulis papais leões vovôs e tantos tantos. Deixo assim, a síntese incompleta porque pra ter vida, fortuitos amigos, não há nunca que se por ponto final ou vírgula nem para si nem
para
o
p
o
v
o
…
***Diz assim o bilhete escrito com caneta azul na contra-capa do livro amarelado:*:
*
**”Para*
*Maria Alice e Toquinho*
*
**Já com saudades antes de vocês irem embora*…
*
**Com um abraço*
**fraterno*
*
[algum AUGUSTO BOAL imaginado na rubrica]
*
***08.75* [numa grafia rápida]”
*
O Maravilhoso Coração dos Gatos
esta impossível aranha de encontros
o gato
um coração insurgente contra a morte
sete vezes lua
sete vezes vida
vagando insolente contra a Noite noite noite noir… rrrrrrrrriiiirrr a fera
insolúvel enigma de erros
a rir ruir rugir
um coração imóvel sobre a cama
esquece do próprio sangue
o sabre esquece o tórax
e saboreia o vermelho que bruxuleia
suas células, suas salas-de-estar e celas
onde silente o coração das estátuas vaza
seu liquido de aventura e batalha
sua fronte imberbe, resignada
como o futuro espelho de todos nós
futuro imóvel, impossível
porque fundido em mármore pelas mãos
dos piores artistas de talento
Fogo de Paia
Guarda teus gestos de fogo
é tempo de sombra no coração das cores:
o sol está farto de sangrar luz.
Devolve o trigo ao solo
as bocas desistiram da fome
do labor do pão não resta carne:
a mão é desperdício de terra.
Tua mão é mímese malárica de uma febre que ciranda
Teu coração é um sopro de fome no horizonte dos olhos
Teu silêncio é um prato de tigres no trigo das línguas
Teu coração, tua mão, teu silêncio
teus símbolos sagrados esquecidos na gaveta da mesa
se repetem sem culto
ou rito
a não ser o tambor de teu peito
em verve silente agradecendo as ondas de um mar envasado
teus minérios vermelhos
escorrem na cor
do fogo
cujo gesto imitas,
cujo calor ruminas.
és de teatro e tuas unhas de sombra
sequer arranham a noite,
contempla o cansaço das palavras a despeito da fé pública.
Ousasses ter ido às igrejas, comparecido aos comícios,
tivesses devorado as flores, pisado nos muros,
fosses tu o inventor das portas e das pontes,
tivesses descoberto o amor nas janelas secretas da madrugada,
talvez fosse sal tua esperança, não pó.
Assim como estás,
maquia teu rosto.
Teus olhos estão vivos apesar da escuridão:
A lua é outro palhaço,
também fingindo luz.
Chama teu gesto alucinado,
o sorriso é um nome do fogo,
o incêndio é a flora do encontro!
O eclipse é tirano
mas a ponta do teu nariz
pode dar rumo ao girassol.
Resta um Tigre
um corpo de água e fera resta no chão vermelho
entre líquidos que coagulam e coalham
um pedaço de voz naco de cabelo pedaço de voz
misturado ao tórax de tubos e drenos
e orifícios um corpo de lama retorna ao barro
pudera retornassemos ao utero a carne se expande
água que brotamos tigres amor maternidade
o corpo é caixa de música e reverbera o poço
que nos circunda em gravidade líquidos
escuridão logo devora a luz destes olhos
onde a luz destes olhos? sopro no fogo da vela
vida foi cera escorrendo no corpo rio movido a combustão
onde a esperança agulha de metal
tesoura de ciência com que abri tuas costelas?
nudez vermelha vestindo branco nudez no plástico
os homens que nos circundam também durarão um sopro
sopro e resisto levanto poeira levantando o corpo respirando
soprando à barla vento ê-ho! corpo de nomes e natureza
substantivo comum ousa o verbo e a mentira
resiste esperançando o vazio
soprando tinta vermelha nas costas titânicas de um deus de pedra
a boca aberta só fala quando é palco
o braço só existe quando é gesto
aqui estão os atores anunciando que sombra é luz
no trigo da língua o pão
na terra da voz o barro
num parto teu sorriso dá luz aos olhos
e a água dos olhos alimenta a boca
comédia! tragédia!
inventar é dar sopro ao sopro
e o rosto é a invenção da luz
abre-se ao fogo como uma flor se entrega ao sol
e logo ousa poesias: que há pássaros e que pássaros voam
que há flores que se abrem ao sol
que há pão e há café
e neles a esperança da manhã inevitável
uma vez inventada, a esperança é inevitável:
tua máscara o circo do mundo a praça das marés a praia do sangue
o choque das multidões a convulsão dos dedos o segredo das mães
o veneno dos muros o trabalho das lâminas a espada do peito no peito das coisas
as boas novas que trouxeste ao mundo quando nasceste
a flora e a fauna de teu corpo quando te tornares poça d’água e resto
a tinta vermelha de ti o busto de teu coração já pedra derretendo na terra
a memória de teus amores e a luz de tuas mortes
sombra de mãe mão de pai
filho correndo na corda bamba
da luz na lâmina do escuro
em que sangraste também
a água e a fera de teu corpo percorrem o hospital
sangue e luto suor da palavra alma quer ser braço ou silenciar
mas tu mesma és de silêncio e já nem és: o que resta?
teu tigre caminha ao meu lado com olhos de mistério e escuro
Curumim
Há uma criança na areia
que tua memória revolve
Desterrada do mito
ela retoma a carne
o ventre o vínculo umbilical
entre memória e mão curumim e
abraço selvagem –gesto
universal de batismo-
para dar nome ao mundo e
armar sonhos
punhais revólveres de ti
terra revolvida
da era do barro
anterior ao metal e ao tédio:
quantos braços no odre de teu nome?
Ombro a ombro resistes
junto ao menino que manchou a estátua
pichando seu nome ousando
seu próprio nome em tinta barata
na placa de alumínio -pretenso parafuso na eternidade-
na tua boca calada –praça de inevitável multidão-
no teu terno, teu uniforme,
teus olhos manchados
por tinturas de palhaços e xamãs
Totem de argila e de caos,
tua criança gargalha
o próprio nome
alucina as tropas
renova o nojo em
almas de mármore e fuzil
A marcialidade (eita!)
o teatro dos bustos (opa!)
o gesto de chumbo morto (rá!)
não há porque temer um teatro sem atores:
basta um moleque
para explodir o rabo do gato o ódio enfileirado
os soldados de plástico o padrão alucinado
o tédio do mundo!
Os Canários Cegos
I
Apolo, cala.
O sol não é lúcido.
Aqui só há fogo moldando
pedras
animando o mar
A luz do celular é
nada perante o poente.
Calem-se, queridos:
Eis a noite
a face
a máscara primeva
Só ela traz em seus dedos
o cacho de estrelas
d’onde surgem os minérios
e os líquidos.
II
Vê: até o pássaro
tem sombra
aqui onde vives e
divides o tempo, alucinado.
Cala-te, boca.
Nada é oculto,
tudo é inefável.
Um barco afoga os mares
O avião anulou os céus
Há uma bandeira fincada
na lua
e o coração é
um marcapasso
o muro diz: asas!
Esta trilha trilhada por carros
e carros são carcaças abandonadas
pelo caramujo
da Terra.
Tua pele de borrachas
Teu esqueleto mapeado
III
Olho: cega!
Já não estás na tarde
embora o dia te devore.
A distância entre a pele e a pedra
é minha vida inteira.
Pudera ver o que não há na fotografia:
o tempo é espaço
e me atravessa feito maré
a afogar corais.
Assim postulou a ciência
a homens como eu,
assombrados em tua luz
queimamos
e criamos leis
brincando que há Criação
e que é um livro.
Deciframos códigos
onde só há tinta
e lemos bem alto, de ponta-cabeça,
como fazem certas crianças
perante encadernados grandes
e coloridos.
Eis o mapa-mundi, logo gritamos:
“O céu é azul!”
IV
Abaixa a régua, olha o horizonte:
a terra não é redonda
a terra não é o centro do universo
a terra nem está no universo.
Talvez a terra cirande,
com esses mitos simpatizo mais.
Apolo, cala, observa Guaraci:
vê como ele canta
feito canário cego.
Astro oculto
Tua mão tateia a noite
Até que uma estrela
cai
Como uma luva.
Fruto Aberto
Fruto maturado sem sol
Teu calor é de febre
Ou de luz?
O animal mordeu
Teu corpo
Eis tua carne
Caindo do firmamento
Por toda terra e inferno,
Fértil ou não.
Árvore no corpo ár
vore no olho árvo
re no sonho árvor
e no ar da árvore
ao avesso
teu pulmão
que fez raiz no encéfalo
no crânio
quiçá na alma.
Olho d’água
Brota da terra
Brota do osso
Olho de sangue
Rio murmurando na pele
Eu te navego no espelho
Onde teu Narciso,
Teu peixe mulher?
Onde beber em tua
margem potável?
Onde cair em teu
abismo do mundo?
Ah, mas se ainda fosses mar…
Queijo Penugem Gatos e Maçãs
A lua é o primeiro gato
Corpo de quatro versos
Haikai lúgubre da mulher
E por mulher eu compreendo
Toda a existência
Toda a existência é doce e
Ruiva como a pequena lua
Que seguro em minhas mãos
Cacho de pérolas corpo de maçã
Meia lua seio aberto
Leite amarelo luz
Retrato envelhecido
De um sol que se contempla
Eu sou Narciso subo aos céus
Demônio montado em doutor Fausto
Eu estou impressionado e impressiono
Em meu cavalo escuro
De ciência e retidão
Aleluia! eu grito a
Rouquidão que tomou o mar
Espuma nuvens de onda
Na minha superfície
Que também é tua, tu
Que renovaste a minha fé.
Mulher amada minha dor
É homófona ao amor anônimo
Que habita em todo homem
E quando digo amor
Falo de qualquer mito de cura
Eu garanto por este olho
Que carrego aberto
Orbitando os céus
Galileu está aqui!
Seu corpo no queijo
Da lua! Seu olho
Vela por nós, tal
Qual santo católico
Daqui de onde olho
A lâmpada elétrica a lua
Teu corpo têm o mesmo brilho
A mesma aurora e a mesma
Penugem
Poeminha Cheio Duns Amores
Amor é palavra escura
De obscuro sangue
Verde de mata densa
No carnaval o amor
É a fantasia da Verdade
Tecida por fantasmas
Agulha na pele viva
O amor seduz
Em seu percurso
Altivo perfurante
Perfume no vazio do crânio
Seco o corpo em infinda sede
O amor é o sopro que inventa o rio
O amor é um sapo
Devorando a lagoa
Com língua de teias
E um canto réptil
De sangue quente
Ai, amor dragão
Cachorro azul
Ralo de estrelas
Canino de flores
Raio lentinho
Meio luz meio fome
Quase é leite…
O Circo Em Mim
Canção circense para Bel Passinho.
Tem um circo em mim!
Tem um circo em mim!
Olha o trapezista que faz cosca no meu pé,
E o palhacinho não aguenta meu chulé!
Aí, quando eu me passo o chapéu
Só tem meu bolso vazio,
Mas tudo bem, né, Bebel?
Pulo no meu bucho e estripulo e distribuo
Numa cambalhota o melhor de mim!
É uma gargalhada que não tem mais fim!
É que eu não sei desmontar sem me desmontar…
Meu coração é vermelhinho
Feito a bandeirinha
Que bomba lá na lona
Pois você há de convir
Que sonhar
É bem melhor
Que sangrar!
Tem um circo em mim!
Tem um circo em mim!
Um gigante no meu peito e um elefante no nariz!
E é blá blá blá blá blá blá blá blá blá blá em dibridi!
Sou um mambembe em mim,
Sou um trapézio e
Tropeço
Trôpego
Só peço
Mais um sonho
Mais um som de palma
(pápápá!)
Da plateia alma
De dentro de mim
De dentro pra fora
Paripasso
De dentro pra fora
Sincopado
De dentro pra fora
Meu abraço
De dentro pra fora
Meu coração
Que é vermelhinho
Feito a bandeirinha
Que bomba lá na lona
Pois você há de convir
Que sonhar
É bem melhor
Que sangrar!
(acho que me perdi!
Acho que me perdi!
Acho que me perdi!
Acho que me perdi!
São tantas cidades e picadeiros
Ventos e flatos
Sorrisos e sovacos
Senhoras senhores
Eis meu grande ato
Anônimo solitário
De fato
Nas multidões de meu circo corpo afora
Acho que me perdi!
E, se não me perdi,
Eu devo!
Agora!
Eu devo!
Agora!
Eu deito intacto
Espalhado por aí
Olha o povo o leão
A ciranda
A criança e o canibal
A festa
É o que me resta
Meu corpo meu circo afinal
Meu corpo meu circo
Afinal
Meu corpo
Meu circo
Afinal
Minha vida é
O infinito
Num ato
Banal)
E pode crer
Que em você
Também
Tem um circo,
Meu bem!
=)
O mundo envelheceu
E eu não fui feliz.
Olhos d’água, beijos de amor,
Cidades, sóis:
Era isso?
Eu não fui feliz.
Não sei o fim deste enredo,
Não sei se baterei palmas.
Antecipo as despedidas,
Esta casa fede,
Preciso de sol.
Pinto meu rosto
Como quem põe balas numa arma.
Amo esta nação de carnaval
Mas meu sangue veste luto.
Amo o batuque, solene invocação
Da destruição de
Quadris presos e solenidades.
Mas não aprendi a sambar,
Nunca fui capaz.
Eu não fui feliz.
Ah, felicidade futura,
Tua guilhotina de reis espúrios
Onde a lágrima é soberana.
Canto do Empalhamento da Multidão
Alma chora um canto escravo
Nas correntes de auto-ajuda
Tantas moscas no corpo bravo
Mas a ópera do verso não muda
Os militares estão voando
A liberdade secou o seio
Em silêncio, silenciando
A fome do narciso feio
Alma chora um canto escravo
Nas correntes de auto-ajuda
É um pássaro, um avião
Um herói americano
Voz de Jesus, corpo de dragão
Não há carne sob o pano
Tantas moscas no corpo bravo
Mas a ópera do verso não muda
A morte em três dimensões
Na tela do cinema
O medo é um robô a repetir sermões
Sem que a plateia trema
Alma chora um canto escravo
Nas correntes de auto-ajuda
Ócio ox ódio
Terra prometida
Mundo inóquo
Multidão especulativa
Totalmente imóvel
Tantas moscas no corpo bravo
Mas a ópera do verso não muda
Futuro empoeirado no armário
O Paraíso na boca das traças
A esperança é um salário
Só quer sexo, pensão e graças
Alma chora um canto escravo
Nas correntes de auto-ajuda
Contra o cinismo triunfal
Na boca do moralismo funesto
Atiro minha pedra filosofal
Ouso esta canção de protesto
Tantas moscas no corpo bravo
Mas a ópera do verso não muda
Anedota da Coragem
Aos colegas que lograram, no bacharelado de medicina, também obter a magistratura.
O doutor diz ao baleado
Cadê a coragem agora
De apontar uma arma
Para a minha cabeça
Logo fica claro
Que o doutor em sua beca
É mesmo muito macho
Sem uma arma em sua cabeça
“Enquanto o outro sangra, eu digo o que acho,
Quanta coragem,
Quanta coragem!”
Procissão
A manhã deu luz ao rio. Mergulhado no colorido do primeiro sol que lhe foi possível, ele deixa sua casa, atravessa a floresta, coberto de lama até a cintura. Toda gente o acompanha, pois já é tempo da procissão. Caminha entre peixes e crustáceos, entre pássaros e mistérios, solitário na terra submersa.
Carrega sua Mãe nas costas, feita de gesso, os olhos opacos celebram a cura, a solidão de pedra em seus ossos não mais permite que se levante da cama, porém seu corpo de gesso é uma oferenda de alma, e os ombros do Filho, seu estandarte. Ele mergulha no mangue, semente e larva por todo o corpo, mas o Branco da mãe permanece infecundo. Mergulha até a viração das águas, desperta as Encantarias, até que finalmente, exausto, encontra os portos da cidade que respira sob o rio, é para lá que as almas descalças deste povo confluem.
Lava as vestes sujas na segunda manhã, o fogo do sol seca o corpo ferido por onças do tempo. Está nu e adormece na terra como um fruto fendido. A multidão caminha sobre seu descanso, repetindo seus passos. A eternidade é turva, murmuram os rios. Ele abraça o vulto da Mãe, e desperta no suor das avenidas.
Despertou no cansaço das Avenidas, abriu os olhos para a Paixão dos Homens, e seu grito de horror espalhou-se em cinzas, descoloriu a cidade, impregnou as esquinas. Seu olhar de espanto não encontrou a terra e permaneceu flutuando, em eterno conflito com o vidro, as grades, o concreto, como quem se debate em fúria contra a grande boca, uma espinha de peixe que atravessa o esôfago da metrópole. Toda gente o acompanha, pois já é tempo da procissão. Atravessam juntos a nuvem espessa do homem, ele levanta sua frágil Mãe sob a cabeça e abre-alas para o cortejo que dança.
Longe, a Geratriz carrega no colo a luz que emana do ventre fecundado pelo Espírito de Tudo. Naturalmente, é uma criança e ri um riso liberto para o dragão de gentes que recria seu Nome em cânticos.
Ele está só na Grande Avenida. Está só entre velas. Fogo, barco, fome. Multidão em megafones e sirenes. A cidade desconhece seu nome. Seu corpo desconhece os comércios que vociferam um nome genérico que remete ao seu. Suas línguas não se tocam, seu coração bate tambores para conjurar um mundo esquecido pelos fogos de artifício do Magnata. O corpo calado, nu sob as vestes e as feridas, é a própria imagem da Eterna Criança, está desprotegido como toda luz deve estar. A Mãe de Gesso em seus ombros ameaça ser destroçada pelos pés dos bons e dos justos. Todos atravessam as nuvens espessas. Um cão lambe os céus, a tempestade não coagula.
De joelhos, ele vê o Primogênito brincar em inúmeras formas: o pão repartido em músculos, os peixes no corpo dos anjos, os braços carregando as pernas, as pernas repetindo as patas, o ventre do mangue, o crânio do mundo, o mistério dos órgãos, o demônio lacrimejando fé na eterna sede das Mães. Ele, Homem, só tem suor, e dá de beber a imagem frágil que insiste em carregar. O artesanato abriga espíritos e aqui já não há espaço para distinções.
Próximo da catedral, sua mãe é quase carne, e seu corpo quase barro. Já não é Homem, é casa que abriga a Mãe, é estábulo onde nascem Deuses. O mundo insiste em nascer, a Avenida é vento e útero! Seus animais o observam das profundezas. Os magos em seu corpo estão em festa, o caos da Estrela Guia devora a lama e as nuvens espessas. Eis o milagre da eterna transformação! Seus olhos vermelhos dão luz a outro rio, de água infinda: toda gente o acompanha, pois já é tempo da procissão.
Pôr do Sol
Teu sopro furou meu rosto
E agora a tarde colore minha cabeça
Mas não respiro
Teu beijo cavou fundo
Tão fundo
Que o mar vazou inteiro
O mar endureceu
Teu seio coroou
E degolou
Tua mão é um vazio
Tua mão que ergueu o mundo
Celebrou a carne
Abriu a cama
Tua mão que abrigou a estrela
Tua mão está vazia
E já amanhece
Mas não há sol
Da Noite da Ciência na Manhã da Infância
Peter Pan pousou em minhas costas arqueadas enquanto eu caminhava sonolento na violência matinal numa via marginal da metrópole esquecida suja de terra revolvida e minérios que voam pelos mares até o outro lado do mundo e sugeriu num sussurro: “se cavarmos encontramos os chineses”, mas minhas mãos estavam velhas e o concreto do complexo empresarial havia sido limpo esta manhã, “não posso te seguir no abismo”, “não me chame de coelho”, “nem eu uso vestido azul”, “nem és criança mais”. Eu me sentei no escuro e aquela criança sem rosto deitou em meu colo e contamos histórias sobre príncipes esquecidos e sobre a luz das estrelas que já não eram vistas sob a luz halogênica científica “o que será feito da ciência se as estrelas são lendas?” Galileu sentou pesado ao nosso lado cheirando a velhos livros e fast-food, parecia ter chorado a noite inteira, “venho chorando noites e noites”, e suas lágrimas escuras fizeram grandes buracos na praça de alimentação onde nos abrigávamos. Logo alguém virá limpar tudo. Eu quis correr, e juntos corremos, mas tudo é vidro, concreto, esgoto, e as florestas nos devorariam. Galileu sugeriu pique-esconde, Peter Pan nos encontrara, e todos mergulhamos num salto para dentro, fundo no umbigo universal. Eu me escondi em posição fetal e esperei um despertar que nunca veio. A luz do dia trouxe o café da manhã suado, eu enxuguei minhas roupas, vesti minhas lágrimas e parti, sem saber se em minhas costas arqueadas estava sentado Peter Pan, Galileu, o Peso do Mundo ou a curva de meu corpo embrionário.
Poeminha do Amor Corroído nos Infernos
Se, ao me cortarem a cabeça,
Eu ainda insistir
Em cantar teu nome,
Não se engane:
Quem ouviria os versos
De uma cabeça exangue?
Se eu recitar sorrindo
Do leito do mar onde afundo
Qualquer cantiga florida,
Lembra que habito
Na barriga do mundo:
Corroído por sais
Entre navios digeridos.
Diante disso,
Quem vai procurar
Um tesouro escondido?
Quem vai amar o morto,
Beijar a boca já aberta
Sempre pronta para
Um novo encontro?
Ele disse Eurídice,
Ele disse Eurídice,
Ele disse Eurídice
E depois desdisse.
Quarto de Dormir (Pequena Canção Sem Melodia)
Por estar sozinho
Eu me deitei no silêncio
Eu posso estar sorrindo
Mas embaixo da cama
Há um monstro
Eu acho que tem o seu rosto
Quando enterrei meu futuro
Devo ter furado o mundo
Acordei no fundo da terra
Abri a boca em minha defesa
E fiz da cidade uma cratera
Eu acho que tem o seu rosto
Pequenos poemas para canções
I
Tudo que habita meu corpo
Ou é inteiro ou está morto
Tudo está no meio do caminho
Ou é pássaro ou é ninho
Tudo é luto ou luta
Ou amor ou veneno
Tudo é fome ou alimento
“Respeite e depois mate”:
Decifro ou devoro com gosto
Tudo que habita meu corpo.
II
Estou cego
Leia em meus olhos
Eu não nego
Abra as janelas da casa
Os insetos também querem voar
Minha cabeça nas nuvens
Deixa o sol entrar
Suba em meus ombros
Ponha-se no meu lugar
Perdoe meus sonhos
A dor é um reino sem trono
O Rei está nu em degredo
Pergunte ao espelho
Espalhe o segredo em você:
A beleza está nos olhos
De quem vê.
Córion
Perdendo sangue por membranas e orifícios
Perdendo sangue pelos olhos perdendo sangue
Em eterna espera
Perdendo sangue entre unhas
Perdendo sangue no crédito pessoal
Absolutamente perdendo sangue através de sua mãe
Através das membranas, o córion
É um segredo hemorrágico violado
Perdendo sangue no inferno cotidiano sangue
Na velocidade perdendo
Sangue no repouso
Na comunicação instantânea
Perdendo sangue na nudez
Perdendo sangue na morte do amor
Na infiltração destas paredes
Perdendo sangue e alma e corpo
Na inércia de meus pares
Perdendo sangue nestas
Roupas velhas perdendo
Sangue no carburador
No ar condicionado do
Carro o cheiro dos coágulos
Perdendo sangue no
Antibiótico
Receitado em duas vias
Emitidas em duas vias
No vento perdendo sangue
Sangue na eternidade
Das buscas sangue
No banco traseiro de
Seu carro no ipva
Na grama no suor impregnado
Na cama nas ventosas
Nos manuais e estudos
Prospectivos
Perdendo sangue
Na caverna de seu quarto
Perdendo sangue noite
Adentro sangue
Noite adentro
E você não sente
Os dedos nem os dentes
Esperando por Deus
Você não sente os dedos
E a morte silenciosa
Dos rios e vasos que
Percorriam sua doce substância
Ao redor, o mundo em
Tumulto e violência
Perdendo sangue você
Corre
Sorri para o surgimento do dia
Perdendo sangue você
Cava seus prédios
Planta seus filhos
Perdendo sangue
Você deita seus ossos entre as nuvens
Perdendo sangue você tece um cobertor
Com sua própria carne
Perdendo sangue
Seu coração pulsa
Até quando.
Sobre os Animais e as Flores ou A Flora e a Fauna
Os animais dançam do arco da minha porta
Até a linha do horizonte
No escuro da rua as maçãs explodem nas nádegas
Da mulher desconhecida que tangencia seu caminhar
Ao rugir dos motores dos coletivos e dos carros particulares
Onde meu olhar consegue pousar
Os dedos tristes das palavras
Me pedem silêncio
Em meu peito, a criança da ciência arranha as paredes torácicas,
Quer partir o mediastino em sua pressa, quer dar nome a toda minha anatomia,
E se debate e chora e adoece e cresce e aprende palavras e dá os primeiros passos
Enquanto a Vovó Mistério ri de suas tolices e reza seu terço infinito
Ela observa atentamente o apodrecer vívido de meu corpo
Para me banhar das artes sujas e vestir minha roupa de ir à Igreja
Num domingo impossível que jamais raiará
Meu sorriso apócrifo
Traz entre os dentes o evangelho
Dos animais que sangram
Nos álbuns de família
Na violência dos ossos
No cardume de fomes
Na extinção dos peixes e dos pães
No amor correndo nos canos da casa
Na raiz dos prédios
Na geografia dos mercados
Na alma coletiva devorada pelo corpo coletivo
No excremento do universo
Nossa fogueira não resistirá à tempestade que o tempo vomita
Eu agradeço o calor de minha mãe enquanto abraço os ossos do futuro
É um consolo que o sal desta terra também venha de minhas lágrimas
Minha vida é um capilar do mundo
E o sangue é o mesmo sangue
Do coração e dos grandes vasos
E das vísceras, dos músculos
Da face e dos lábios
Da língua
O sangue é o mesmo sangue
Deus deve morar nos pulmões
Eu me junto aos animais e
Juntos dançamos ao redor da fogueira
E do sexo e do trabalho e da sociedade moderna
E das civilizações perdidas
Da virgindade da humanidade em sua maculada concepção
A exaustão é nosso bem coletivo
E eu morrerei homem também
Enquanto as flores permanecerem
Brotando do asfalto.
Vermelho
Para Mirian Cruz
O vermelho escrito em teus cabelos
É o mesmo vermelho de tuas paredes
E nos vasos de teu corpo e de tua casa
Que é tua paleta de cores
O retrato delicadamente retorcido
Dos porcos a correr no cimento
Quilômetros abaixo de tua janela
E no ar que fumas o hálito escuro
Dos que calam sofrem dormem
Disfarça a liberdade que habita
No céu de tua boca no vermelho
De teus lábios pintando o quadro
Em que vaticinas a verdade das mordidas
O silêncio dos inquietos
O riso dos hipócritas
O labirinto das crianças
A dramaturgia dos animais
As plateias em quartos fechados
A infância rosada jaz viva por toda a casa
Como poeira que se espalha
E o sol quer entrar pela janela
Quer entrar em tuas unhas e de fato
Alguns raios escapam em tua risada
Que perfuma a cozinha
Enquanto já pensas em outra coisa
O sono do demônio a morte da substância
A ferida da mãe a mudez do pai
Os astros se debatendo nos círculos do tempo
No banheiro no velho retrato esquecido na lavanderia
No abrigo do lençol na lâmpada queimada
No ovo quebrado no sonho esquecido
No esquecimento induzido na amnésia involuntária
Na inércia coletiva
Na teimosia por justiça sonho e tudo
O mais que já não cabe na casa
O vermelho é um verme que se recusa a corroer
A delicadeza da carne viva
Porque obscura amorfa a paz
Teima em brotar amarga em tua linfa
Conferindo uma cor estranha de dia nascendo
A teus músculos inquietos.
O Erro Elétrico
A máquina estará vazia estará vazia
Revelará sua verdade e seu desejo será uma ordem
Mas será vazia a máquina trará seu coração à tona
Enfiará pílulas em seus olhos
Sermões garganta abaixo
A máquina será máquina perfeita e vestirá branco
Sua alma de mecanismo e evidência
Sua razão razão perfeita em sua racionalidade
Em hipótese alguma voará
Mas terá asas de astronave
Será redonda quadrada recortada ao meio
E assinada por trinta artistas em evidência
Mas será muda
A máquina ouvirá todos os passos
Contará cada suspiro
Determinará o calibre de cada veia
E o tônus de cada artéria
A máquina fará da alma ciência
E seu desejo só será ordens
A boca da máquina só servirá para devorar
Roupas livros cores línguas
Decepará os braços
Dominará as pernas
Raspará com a mais computadorizada lâmina cada pelo em cada corpo
Cada miolo em cada crânio
Viverá sua vida plástica em perfeita determinação
Até morrer
Sem jamais ter sido:
Já os homens permanecerão ressuscitando
Correndo loucos
Em estado fetal
Por todo o cemitério.
XXIII
Já é tempo de deitar em seu colo o cadáver e abri-lo
Gentilmente do mento ao púbis com sua navalha
E porque você diria não?
Abra bem a boca
Encoste os olhos nela
Só há escuro onde havia a língua
Um buraco
E o pescoço aberto
Retire o externo com a tesoura de cortar costelas
Os pulmões e o coração repousam intactos sob o líquido escuro
No estômago
Ainda não digerido
Resta um almoço magro
Beije o rosto de cada um na plateia:
Não há traição.
Logo estarão deitados juntos,
Do mento ao púbis
A navalha.
E porque você diria não?
Poema Religioso
Carrego minha morte deitada em meus ombros, Senhor,
Carrego este Teu peso, suave e carnívoro, em silêncio,
Enquanto observo tuas mãos chamarem ao longe, distantes.
Teu canto tenta me adormecer, mas estou surdo.
O gosto de plástico em minha boca é o corpo do anti-Deus moderno e colorido.
Minha alma busca um repouso inútil na loucura
De saber que é Teu corpo no lixo devorado nas televisões
Num fast food.
Tudo é trigo e barro, e tudo é carne.
Tudo é sangue e peixes, tudo gira triste
No móbile celeste de Teu quarto solitário e infante.
Montas meu corpo com cuidado sobre a caixinha
E fazes com que a música soe doce e consumptiva
Logo serei esquecido junto aos outros brinquedos que já se quebraram
Mas em minha engrenagem ainda restará o açúcar de Teus dedos sujos de doce.
Mão e Alma
O coração do Homem ainda pulsa em minha mão.
É um pássaro molhado, e fez ninho nas linhas de minha palma.
É da cor do meu sangue.
É um animal acuado defronte a palavra que lhe dá nome.
Pulsa em glória e medo. Glória e medo. Glória e medo.
O coração do Homem pulsa. Um voo imundo
Feito de eterna queda. Pulsa. É minhas mãos e meus punhos e minhas unhas.
É uma luva de peles mortas em minha alma.
O coração do Homem é o lobo, sua fome é minha fome, e me devoro.
Suas mãos enormes pulsam em minha mão mínima.
O coração do Homem é o pássaro, suas penas são minhas penas, e me decoram.
Pequeno animal, eu te dou minha razão e minha poesia,
Porque não possuo mais nada,
Porque não posso te confortar do frio que o Sol impõe.
Na imensidão, tua glória e teu medo devoram meu sussurro que recito a plenos pulmões.
Abraçado a teus dentes sorrio cego enquanto meu corpo desaparece em teu corpo…
O coração do Homem ainda pulsa em minha mão,
Resta poder tocá-lo.
O Silêncio e a Rua
Grave e sorridente
Minha alma esfacelada caminha altiva
Entre suas irmãs:
“Nós estamos surdas, ou foi nosso rosto que mudou?”,
Elas se perguntam em silêncio,
Sem que nenhuma boca se abra…
Os poetas da América não estão mortos,
Apenas diluídos,
E caminham no corpo dos edifícios
Ruminando em silêncio a memória
De uma terra bruta que jamais conheceram,
Nem conhecerão as gerações futuras.
O homem livre tem de inventar seu rio,
Desenhar no próprio corpo tão devastado por anatomias
Escatológicas científicas
O sincretismo de nossos deuses racionais e
Místicos.
O amor ainda cresce no ventre da liberdade,
A liberdade ainda está no chão,
E ainda há terra em meu peito,
E meu grito humano ainda suja de terror
As paredes brancas do hospital público ou privado.
Ainda minha boca, mesmo que entre pílulas,
Ainda meus dentes, ainda minha língua, minha glote,
Faringe, laringe, epitélio,
Arrancando o braço dos dentistas,
Engolindo com prazer animal e descendo novamente ao sangue,
Negando o branco,
Sujando a bancada com a arcada dentária
De todos os nossos prazeres.
Eu não me engano: tenho certeza dos homens
No deserto das multidões, mesmo que em exércitos,
Mesmo que em filas, desesperados, gordos,
Redundantes, obscurecidos pelo medo de si próprios,
Pela tristeza escura impressa nos cartazes que gritam “Não existes!”,
E a rua inteira é um canto de negação de nós mesmos:
Ainda assim os homens engolindo em seco sua verve
Alguns com as mãos no céu da boca
Vomitam sua fome arte razão esquecimento perdão
O líquido azul em seus pés é ácido, e tem a cor do céu
Num dia ensolarado e também durante as tempestades
E quem olhar em seus olhos rotos que só parecem doentes
Em sua boca aberta vociferando a morte e os partos
Verá só a si mesmo e
Finalmente desperto,
Seu grito poderá silenciar e ainda assim
Ser.
Canto I
O amor está exposto, cru, no corpo que seguro nas mãos,
Como a noite vai engolindo, lenta,
O cerne do dia, tua pele, num batuque, é o código morfológico
Do que libertaria meu sangue de meus olhos, meus olhos de minha boca,
Minha boca de minha fala, e eu todo esparramado na cama
Sou água a lavar o mármore. Úmido, forte e sujo, escorro
Levando tua espuma, levantado feito um deus recém-nascido,
Percorro tua igreja durante a madrugada, inventando o vício
Num milagre sanguíneo, carnavalesco. Eu trago sonho e músculo
Ao teu poema estranho, e faço estancar o rio, cirurgião nu,
Sem saber porquê, sem saber porquê, eu mergulho desprotegido
Em tua pele até tuas vísceras, envolto em comida digerida, fígado,
Bile, glândulas e fogo, eu nunca amei tanto, eu suturo e recorto,
E canto e escrevo em tuas paredes, eu esparramo o que é segredo,
Beijo a mentira e conheço tua verdade, abraçando o corpo
Como o silêncio que se salva do que é grito, ou o grito
Que se esconde no silêncio, ou um homem que se agarra
À realidade no meio da multidão, aliás, isso, isso.
Exposto, cru, o amor no corpo que me segura pelas mãos.
Poema Panetone
(Eu te sussurro o poema mais doce e simples, meu amor,
Pois é noite e temos frio,
Pois não há nada mais real que esse pássaro pousado em minhas mãos,
Nenhuma verdade maior que esse pássaro sonhando em meus ouvidos,
E não há o que possuir,
Nem há nada que não possa ser sentido…
Quando eu era um ladrão, minhas mãos eram engraçadas.
As prostitutas sorriam quando eu fazia aparecer moedas em seus ouvidos.
Quando violinista, minhas mãos também eram engraçadas,
Faziam sorrir os reis, gordos e bobos, enquanto eu fazia malabares com vasos delicados,
E mesmo as crianças riam de minhas mãos engraçadas quando fui elefante,
E era só erguer as patas e a tromba e o mundo inteiro ria, circo, palhaço, infante.
E quando fui um par de mãos, minhas mãos engraçadas regiam um coral de dedos
E faziam as linhas velhinhas dançarem valsa nas palmas das mãos. As desdentadas sorriam ao sonhar…
É tudo corte e costura, essa vida, essa vida imensa,
Esses anéis em todos os meus dedos,
Corte e costura, os dias bordados,
Esse esquecimento do que antes era juramento,
Do poema que anunciei como um presente: )
“POEMA EM UM POEMA
Um sonho bordado em um barco
Bordado em uma noite bordada na chuva
Bordada nos olhos do meu amor
Que sorri e toca o dia,
Minhas mãos.”
(Doce o poema, doce o sussuro do poeta que grita. Hoje nasci
Com voz de fazer ninar e com a carne boa e barata dos panetones…)
A Galinha
Porque ser belo já não é ser inteiro,
E o que foi óbvio está vestido como turvo,
Porque ser aberto se tornou estar denso
E apenas ser já não significa estar puro.
Durante a noite, engoli as fronteiras que ergui
Pela manhã. Vi meus vasos derramados,
Vi a carne empapada de sangue e de alma,
E, na lama, apenas meus dedos moviam-se,
Tateando, lentos, a superfície do ninho.
Os ovos misturavam-se à palha,
Intactos e amorfos. Dentro da casca,
Os animais esqueciam se eram pássaros,
Lagartos ou alguma espécie de peixe.
Conforme envelheciam, se tornavam apenas devir.
Envolvi meu corpo ao redor da ninhada,
E os embriões adormeceram no calor da espera.
Barbárie
Porque me vi livre de repente,
Sem sequer saber do que fui libertado,
Chamei Deus Àquele que supus ter destrancado um suposto cárcere e
Chamei homens àqueles que constatei compartilharem deste vento.
Dei nome a tudo que a areia trazia. A tudo que pude tocar na tempestade.
O que não pude alcançar seguiu intacto, foi levado pelo vento.
Amanhã, chegarei em casa.
Despirei a roupa, apagarei os livros,
O dia estará liberto das palavras,
E meus ossos serão belos novamente.
O Lixo
Batia o vestido de domingo na pedra.
Sobre ela, urubus belos planavam.
Um octilhão, o dobro ou mais de olhos,
Todos rezando coisas escondidas,
Uma igreja plumada a rodar no espaço
Caindo como um sinal de satélite, um hiato
De almas sobre o sabão da mulher
Que inventei em meu ato Nero de me dizer
Cheio de carne e saponáceos.
O vestido é de algodão e está torto
No corpo úmido, recém-parido e sexual,
Tremendamente sexual
Da mulher que agora come frutas de feira
Em meus cabelos enquanto estou preso
No cruzamento mais congestionado da cidade.
Meus olhos de intestino delgado, minhas mãos de intestino grosso,
Mas a boca sempre seca, a garganta meio que virgem, meio que inferno,
E versos simples, simples. “A humanidade é imensa.”
Queria um poema puro.
A cara das pessoas, que coisa bela e enganada.
Alguns cães cruzam a rua, meu coração range orgânico às vezes,
É um esqueleto com artrite. Os cães são imensos, e os outros animais também,
E todos roem ossos, eu imagino. Queria um poema puro. Comer algo puro.
Eu tentei amar desesperadamente,
Tentei desesperadamente amar algo desesperadamente,
Todos tentamos, pensava, enquanto me empanturrava de comida e palavras.
Sôfrego, o corpo de arroz com feijão, a alma de frango assado,
Caí embrulhado em ônibus e carteiras de motorista,
Beijei minha mulher de tabelas e molas,
Senti os braços úmidos que me erguiam, mágico,
Em semelhança e roupas.
Tropecei nos pássaros, derramei refrigerante em meus sonhos,
Eram de carne e pano, descobri enquanto, manchados,
Eles desmanchavam em meus dedos.
Um vendaval morre em silêncio enquanto me visto, higienizado.
Outro corre vendaval, fazendo adormecer e surpreender as lavadeiras
Em meus cabelos, e o vento seca os vestidos e os molha de chuva,
E todas cantam, úmidas, algo que arde e entristece. Eu mantenho a maré,
Como quem foge de si, uma ventania que entrelaça, uma fome que se quer em jejum.
As mãos, envelhecidas, estão cheias de lâminas.
O rosto das pessoas se dilui, eu me entranho, diluído entre cachorros e multidões.
Temo tocar no rosto do menino que me sorri, e me pergunto, calado,
Se meu tato ainda reconhece pele, ou apenas coisas de número e corte…
Estamos tão pesados, meus companheiros e eu,
Ainda estamos sós, obesos de tanta esperança.
Uma epifania ao dobrar uma esquina, a morte ao provar de uma face,
Um queda lenta, como de uma folha, ao ver o sol penetrar os orifícios da rua
E me perceber morno também.
Eu desfruto de Deus, literalmente. Arranco-O em dorso e ventre, e cauda e face,
Arranco da árvore que eu amo, e como da fruta, fértil e violento,
Os dentes percorrendo o firmamento, entornando o suco, por vezes amargo,
Por vezes triste e doce, por vezes mulher lavando coisas, por vezes pai distribuindo doces,
Por vezes massa, por vezes trigo ainda,
E por vezes areia apenas.
Mas, no meio da ceia, temo comer apenas da minha própria carne e beber apenas do meu próprio sangue…
Íntimo, forte e torto segue meu grito
Em eco e invenção.
Sou metade espelho, metade anzóis.
Envolta em ácidos nucléicos e saponáceos
A mulher enxágua o vestido de flores,
As pernas, imensas, são troncos imersos na fonte.
No entanto, ela roda, bailarina, em fome e verso.
Deus também roda, num gravador,
Mas o batom nos lábios dela não desmancha com a água,
E a tintura vermelha no corpo lembra a de um índio,
Lembra um ensangüentado que tive de costurar.
Pedi água e parei a sutura. Eu banhei minhas mãos em soro,
E o sangue fluiu, diluído. Sorri debaixo da máscara.
O homem, algemado no leito, jamais partilharia dessa melancolia
Ou desse romantismo. Nem eu. Mas era meu corpo
Que saía de minha mãe naquela hora. Dois pulmões, entre bilhões.
E narinas, e veias, e artérias, e nervos, que sempre correm juntos,
Rumando para o encéfalo ou o coração.
Dizem que os rios fluem para o mar.
Devem existir exceções, eu acredito,
Mas não afirmo.
Só o que é certo é que tudo ruma,
O rosto das pessoas, o gosto das faces,
Os cães entre os carros, a vida das mães, o grito dos pais,
A dor das viúvas, o odor dos rejeitados,
O olor das vivas, o fluir das seivas e das linfas,
Os cortes, os nascimentos, as cidades, os engarrafamentos.
E algo rumando, eterno, para minha alma,
Algo sem número, cheio de olhos, algo como um polvo,
Eterno e múltiplo, pleno de mãos, túrgido de pus e de vinho,
De nádegas e de gônadas, de recifes e de carnes.
Estar preso dentro de um carro num engarrafamento
É tão fascinante quanto inventar cantos de lavadeiras abstratas.
Eu tanto ouço motores como ouço anjos,
Porque há muito do meu Deus no que se decompõe.
Fragmento no. 7
Porque, entre Homens e mortos,
Estamos nós em multidões.
Como máquinas, despertamos mornos
Sob a espera inexata de algo,
Como um pressentimento
Ou uma desesperança.
Morfologia
(…) Enquanto o sol,
Uma galinha amarela a espernear,
Queimava a língua em suas línguas,
Estavam todas empoeiradas na estante
Durante o ônibus que lhes levava até uma
Inteligência inútil e uma sabedoria impossível
Enquanto pensavam nas frases que nunca viveriam
Mas gostariam de falar
Ah, sim, eu andava de olhos baixos
Fixos no retrovisor
Lado a lado com as carpideiras entranhadas na lata
Como tétano, como hécades, como empregadas domésticas
Marchando dóceis até a boca dos patrões.
Alguns adolescentes bobos atravessam o mármore
Com pizzas nas mãos entrelaçadas,
A mangueira de gasolina é erguida alto,
O cloro é desmanchado nas piscinas,
Eu consumo a vida com os olhos no espelho:
Uma alma obediente aos sinais de trânsito
Luminosos, o verde, o vermelho,
O amarelo galinha ou desodorante. (…)
(…) Eu passei a noite inteira feito um açougueiro
E as flores brotavam por onde eu pisava.
Agora eu olhos essas mãos sujas de subjetividade
E sinto como um animal que me espreita
Os olhos claros da objetividade que jamais degluti. (…)
Porque ter sono é ter pais e mães num galinheiro no quintal.
Eu vi as tecelãs sugando minhocas direto da terra.
Eu vi um cobrador de ônibus cantar.
Eu vi um sinal de trânsito subir aos céus.
Eu vi sangue chorando como um recém-nascido.
Eu vi meu nome emudecer.
Eu vi mulheres gritando de dor.
Mas é melhor correr, no trânsito
Toda a atenção é necessária,
Ele dizia com os pés no freio
E na embreagem enquanto eu desviava
De gordas e crianças.
E é sempre mais confortável ter sido criado, apenas.
A misericórdia divina reside
Em não pedir opiniões…
Constatação
A Realidade tem uma barriga heterogênea.
Grávida, a balofa implora por comida no asfalto,
Enquanto arrota na janela dos carros,
E seu bafo é todos nós.
O vidro das portas sobe elétrico, sincronizado,
Onisciente, quem sabe…
Família
Por qual silêncio andará meu corpo
A essa hora da noite da terça-feira mais desnecessária
Que pude conhecer em vida?
Abro as mãos e deixo que o espírito dos porcos
Corra sobre mim
Pois o espírito dos anjos usa lantejoulas
E ri dos que tropeçam por não saberem flutuar sobre a multidão
Eu ergo o dedo médio para o alto enquanto
Meus pés se ferem na lama e caminham
Lado a lado com as botas e as rodas
E as farmácias e as grifes
E os vaidosos e os assassinos e os fracos
Doces insetos etéreos vagam calmos
Como a superfície de um lago no escuro
E seus olhos entre nós soam quentes
A misericórdia é morna
Um exército cor-de-vela subindo ao sol
Como uma lenta correnteza
Um vento triste varre minha cabeça
Eu olho para cima e me despeço da humanidade verdadeira
Como quem se despede de um parente distante e desconhecido
Num feriado de domingo
Eles correm felizes
São dez ou doze ou no máximo duzentos pontos dourados
Nadando entre as nuvens até o poente
Onde, do outro lado, o Abstrato lhes espera, infindo.
Eu abaixo os olhos e sorrio
Ao meu redor
Sete bilhões de desumanos
Constroem a vida
Sujos de terra
Da cabeça aos pés
A Incompleta Fábula sobre Tudo
Nos desacordados nos quartos
Os olhos estão calados
Para que a luz não acorde
Nunca acorde
O tudo adormecido que
Espreita desperto com
Mãos de lanternas e canetas
Com o hálito lúcido de
Filas e de carnavais
As hordas de carpideiras que se alinham
Como exércitos na beira do abismo
Entre o dia e o mergulho
Erguem as mãos de súbito
O rei de tudo há de desfilar hoje
As bocas dos desacordados abrem-se em coro
Boquiabertas
Ele anda estranho
Manco e boi
Vagando entre pastos
Em eterna corrida desesperada e lenta
Atrás da rainha nada
Aquela que vive por detrás das orelhas
Num fosso desconhecido dos anatomistas e dos filósofos
Onde os olhos nunca alcançam
Onde existem palavras jamais provadas por qualquer boca
E é por isso que Tudo tem febre
Pelo sabor que jamais sentirá
Daquilo que jamais
Daquilo que não
Daquilo que nunca
Pois sequer
Poema exagerado e precisosinho
Com os olhos do velho na minha cabeça
Eu desci o corredor como quem atravessa uma avenida
Envolvido pelos carros entrei no gabinete e ergui as agulhas
Sobre minha cabeça a foto antiga de um santo
Voltei por mim e apenas por mim
Envolto em sangue dos outros e assepse
Tremendamente humano e calçando luvas de plástico
Eu remendo a carne velha do carpinteiro
Que me olha com óculos de plástico escuro e
Segura as mãos da esposa que seguram um saco plástico
De supermercado onde estão guardados
Os panos cinza e úmidos que envolveram a ferida
Na perna do esposo enquanto viajavam na ambulância
Do governo federal subsidiada ao poder municipal
Da cidade periférica à capital onde existem
Fios vacinas anti-tetânicas e estas mãos cobertas do plástico
Das luvas número 8 demasiado pequenas para minhas mãos
(dizem que eram de pianista)
E formam uma membrana
“pareço um peixe” eu lhe digo sorrindo
E sua esposa ri e tapa a boca
Onde vivem alguns dentes sujos
E a alma distante que segura nas mãos do marido
E no saco plástico de supermercado sujo onde estavam suas ataduras
Como quem segura um terço
Semelhança que guardo calada
Pois leio em seus olhos e sua saia velha tocando os joelhos
Que é evangélica e me olharia com reprovação “católico!”
Sem imaginar que sou ateu…
Alguém mede a pressão arterial próxima ao osso rádio do velho
Eu enxugo o suor da testa com as mangas
Imaginando uma possível infecção
Minhas mãos plásticas e brancas pingam sangue
Enquanto acrobata entre pinças e tesouras de ponta curva
Eu sonho uma humanidade impossível
Onde este corte fosse o corte do senhor Manoel Abreu, carpinteiro, portador de catarata,
Esposo da senhora de nome desconhecido, demasiado tímida, calada e sorridente,
Provavelmente evangélica e hipertensa, que segura sacos plásticos
Como objetos religiosos, e onde este corte doesse por estar nele e por fazê-lo sangrar
E não por (desconfio, desconfio) ser a costura que costuro e o poema que teço
O acadêmico que furta versos dos decepados
O egóico, o fortuito com palavras e lâminas,
O inverso da objetividade preenchendo prontuários,
O que implora para um Deus desacreditado e terrivelmente onipresente
Poder ver o que é externo, e sentir o exterior,
E estar livre deste gosto como um fígado moldando
Tudo o que o universo despenca sobre meus sentidos
Transformando o que não me pertence em eu
Limitadamente interno
Um circo cobrindo o absurdo das explosões que desconheço
De eufemismos e abstrações
Como um cavalo coberto por toalhas de papel
Transformando os sóis e os seus manoéis e as senhoras evangélicas
Em órgãos, em vísceras a se tornarem poemas viscerais
O ódio às esponjas:
Pudera ser volátil
Ser puro como um halogênio.
Passado no.2
Eu dobrei meus olhos
Até ver em minhas costas
Os pontos que preciso retirar
Como quem revela uma foto
Da sutura
A sutura como um mapa
Em meus sulcos
Como o suco de uma fruta
Bebo essa curva
Esse espelho
Enquanto corro com
Tesouras nas mãos
Como se fossem linhas
E onde toco
Como um açougueiro
Ou uma costureira
Eu decepo coisas enquanto teço outras
Disneylândia
Há muito sangue jogado na cama
Jorrado como estrelas do mar que são cuspidas
Do mar e eu choro como um monstro que sangra
Ensopado o gato enrola sua língua na minha e
Eu me engulo ostra
Em minha saliva os barcos voam assombrados
Voam imensos garganta abaixo como quem se atira
De uma cachoeira esôfago estômago intestino
Corrente sanguínea boca das células
Eu ordeno aos homens proa convés bombordo
Ateiem as velas queimem as velas
Construam casas com a madeira do casco
Pois sonhei que estamos perto da praia
E se não estivermos
Afundemos bebamos o mar utilizemos os verbos
Em flexões estranhas
Até que de nossas barbas o sol nasça
Imenso como o leão no filme da Disney
E da pedra, como o macaco, ergueremos nossos crânios
Nossos corpos neonatos que sorrirão para o próprio reino
Os corações espalhados pelo quarto
As moscas estão gordas imensas
E as larvas não são de borboletas
Alguém lava meus olhos
Com minhas mãos
Assustados com a possibilidade da vida entre os cadáveres
Os vermes sentam à espera
Da hora própria para a refeição
Como velhos amigos conversamos
Sobre coisas dos desertos
E das florestas
Eu lhes digo que algo ainda pulsa
Eles me mostram as crianças e os velhos
Tudo é pasto eles dizem
Eu aponto para as estrelas sorrindo
E assisto o filme da Disney com meu sobrinho
Até as larvas calam para o menino dormir
Tenho medo que meu suor derreta a criança
Estamos ácidos demais eu comento com os que me devoram
Eu pouso
Pouso muito lento
Mas estou gordo e o galho quebra
Repetindo-se.
Ninar ou Simples
Os monstros estão no escuro
Ele dizia enquanto levantava o filho para o alto em direção à lâmpada
Como se fosse uma estrela e pudesse guardá-lo
De toda sombra que habitasse a casa
Mas era dia
E o sol gemia lento nos andaimes
Enquanto caminhávamos tentando nos ninar
Pais de nós mesmos
Os sapatos breves lúcidos
Inflamavam as articulações dos braços
E era difícil levantar nossos corpos infantes
Com a força cinzenta de nossos corpos rotina
Café e sangue
Caminharemos pela rua aorta até o fim dos sentidos
Então retornaremos areia e argila
Abraçados ao suor dos que nascerem
Faremos lama de nossas lâmpadas
Que escutem nosso canto elétrico
Como um choro
Entre os castelos na praia…
Da Sobrevivência dos Mais Aptos
Num instante eterno como numa estante
Minha vida nua ergue-se livro
E eu impresso em letras úmidas
Caminho irritado sob o meio-dia
Goela abaixo na farmácia
Enquanto famintos me espreitam
Pedindo moedas goela acima
Vômito na lajota vômito
E a mãe indignada acena
Abro minha carteira como um punhal
E num instante caminho coberto de caixas
De tarjas vermelhas de tarjas azuis de tarjas pretas
Uma árvore de natal um homem sabor groselha
A gordura em meu abdômen atesta
Que estaria morto há muito tempo
Não fosse o cartão de crédito enfiando
O braço em minha boca goela abaixo
Goela acima até colocar como quem bota um ovo
As pílulas no ninho imenso por favor
Mastiguem as minhocas
Pois meus dentes são todos de leite
E me façam arrotar e me façam adormecer
Malária malária malária
Canção e febre todas as tardes
Malária malária malária
Um saco de carne barbudo e indefeso
Atravessa a rua arremessado por seu medo
Contando os centavos para o analista
Enquanto crianças morrem de fome
(Meus poemas não são sobre mim,
É meu segredo funesto:
Meus poemas não são sobre mim).
A gripe dos frangos já não é mais manchete
A menina atirada pela janela foi super-explorada pelo capitalismo midiático
Hohoho! Papai Noel não existe
Amargo sinto o gosto das crianças em minha boca
O cacho de bananas sobre a mesa
A farofa e a galinha e os tendões da galinha
Em minha língua a mandioca amarela
As mãos da mocinha fazendo a farinha o
Facão ao lado o homem gordo que lhe come todos
Os dias lentamente cada vez mais
Derretida em pó vegetal e pedra deglutida
Seca farinha seca no sacão o velho grita
Minha alma inteira nesta cápsula
O sol de comprimidos me dá a caminha
E canta malária malária malária
Mas estou aprendendo a me entender
É que meu pai me abandonou cedinho
E tenho medinho de morrer sozinho
Mas escrevo meus poemas de amor
Amor juro que escrevo poemas de amor
Eu tenho um grande potencial
Aqui dentro no meu peito e na minha barriga
E um dia minha barba cresce
Meus poemas estão sobre mim me
Enterrando mas vamos cantar a canção que compus
Como uma gargalhada
Afinal é por isso que vale a pena viver
É preciso cantar e ser puro e feliz
Como uma margarida coberta de benzodiazepínicos e mel
Como uma criança de cinco anos de 23 anos
Caminho irritado sob o meio-dia
Havia um homem belo no ônibus
Comparei seu rosto de cavalo imenso com as marcas em minha testa
Uma criança mendigava na rua
Porém eu só podia sentir inveja do seu rosto de cavalo imenso
Em comparação com as marcas em minha testa
Divina classe média de ego e poesia
A criança estende a mão e penso na mulher que não tive e
Invento uns versos tentando inventar uma nobreza
Que jamais terei
“De nenhuma palavra se fará seu gozo,
Que lhe dará o momento presente por inteiro
E se desmanchará no escuro, eterno e não.”
E era patético o poeta contemplando a inutilidade da palavra
Enquanto o homem calado no ônibus era inteiro e era
Homem
Dou cinqüenta centavos à criança
E não lhe digo nada nem sinto nada
Seria cruel demais dar além de uma moeda insípida
Egoísmo como piedade
Toma e compra pão ou cola e só
E eu caminharei para minha casa corcunda e vinte anos
E assim estaremos honestos e ruins
É lucro meu jovem é tudo lucro esta moeda e este vício
Afinal já estaríamos mortos não fosse
O concreto o terror o delírio o vício como uma espinha de peixe
Um prédio onde todos vivemos um berçário ou um manicômio
Incrustado no esôfago de todas as almas
Amargo o gosto da raiva contra ninguém
Me faz socar meus olhos meus rins gritam
Excreta excreta excreta
Como se cantassem malária
E há urina nas esquinas
Estamos banhados no seu cheiro e nos vasos sanitários
Excretamos em coro todos os dias
Amarela a secreção do que nos sobra
E ele lava as mãos imundo
O mundo é a máquina de ar quente do banheiro público do shopping
Arquejando corro farejando meus poros
Entre lojas e mulheres felizmente temos débito eletrônico
Minha boca ascendendo ao paraíso pela escada rolante
Até a praça de alimentação como uma alma
Procurando expiação
O animal moído o vegetal moído o molho de tomate
Eu brincava que era sangue quando era criança
E banhava meus braços e corria para minha mãe
Que lambia minha pele e dizia
Te peguei
Eu sorria mas logo meus dentes começaram a cair
E a pelugem e o sexo sangraram um idioma estranho
Enquanto ensangüentado de condimentos
Eu aprendia a beber e comer como adulto
Fundo fundo na alma súbita
A mulher abriu suas pernas
E eu me vi fraco e homem
Abandonado de cócoras chorando ao pé do altar
Até me esquecer que não fui batizado
Sob o meio-dia o meio-dia
Infesta meus olhos de rotina
Eu quero os cães
Eu quero ter ganhado
Eu quero me debater como uma criança chata
Gritando o presente impossível
Pois sou imundo e bruto
Impossível poeta infecto o feio olhando nos olhos da beleza
O feio olhando nos olhos da beleza
E gritando imundo e gritando gorila e gritando espaço
E gritando abra-te sésamo e gritando pronto-socorro municipal
E inútil e fim
E sem querer o fim
Mas gritando fim
O fim o fim como num carrossel beleza
O fim beleza o fim
Gritando o fim
Gritando
Último o
Fim
E cuspindo miserável e amargo no rosto da harmonia
O poeta mau infanticídio e convulsão
Espanca a flor inocente
Espanca a flor
Espanca a flor
Bela.
Sôfrego caminho pelo resto do poema
Os restos de comida grudados no rosto
Meu sangue lambido pelos restos de mãe
Que guardo como socorro
O menino deve estar dormindo com os cinqüenta centavos
Digeridos na cabeça recostada em algum pedaço de papelão
Eu ajeito meu travesseiro
Está na hora de comprar um ar-condicionado
Afinal
Eu já deveria estar morto há muito tempo
E que Deus vele a desigualdade, criacionista.
A Glória da Manhã
Nossos olhos unidos, irmãos,
Ergam as mãos, agradeçamos
Em coro, e nosso vômito
Subirá aos céus em uma só voz.
Eu vos digo:
A manhã gloriosa se ergue perante meus olhos fundidos.
E, porque tenho fome,
Ela me mostra os homens e as mulheres.
Maria, cheia de graça, o Senhor é convosco, bendita sois vós entre as mulheres.
João o será entre os homens. Por toda a eternidade que imaginam,
Enquanto existirem nomes.
Agradeçamos nosso sangue que pulsa com um salto,
E, quando atingirmos o topo do vôo, gritemos
“Vinde a nós, Gravidade!”.
Ela nos abraçará, solícita e infinita,
Carregando-nos em seus braços,
De volta ao barro de onde partimos.
Ela não nos esquece, nunca esquecerá.
Mesmo quando formos crucificados, ela estará lá,
Fiel, em nossos pés e nossas mãos,
Enchendo de peso o corpo, para que a dor exista
E os pecados se expiem.
Eu gargalhava nu,
Meu corpo deitado ao lado de todos os corpos,
Numa bolha azul recheada de guerras,
Como um peru de natal.
Girávamos em espiral ao redor da estrela,
Enquanto algo nos falava sobre segredos, mas não os revelava,
Sussurrando-os como histórias de ninar, até que adormecemos.
Ah, furem minhas mãos,
Pois eu também estou sujo e abandonado,
E guardo um grito, um grito muito fundo…
Sou um bicho vivo e cheio de sangue respirando bem no centro da cidade,
Correndo do ônibus assassino que me matará
Para dar de comer às manchetes de jornal.
E meu cadáver viverá eterno na terceira página
Da folha policial de uma edição de terça-feira,
Feito um evangelho perdido.
E haverá um ladrão bom na coluna da direita,
Um ladrão mau na coluna da esquerda,
Um traficante na folha de trás,
Receitas culinárias no caderno da mulher
E o ensaio sensual da revelação do ano:
É o prazer de ser homem, baby,
O prazer de ser homem.
Abram as mãos, irmãos, batamos os braços todos juntos,
Estamos juntos na mesma queda,
Uma andorinha só não faz verão,
Mas somos a humanidade inteira,
A humanidade inteira, baby,
A humanidade inteira, oh yeah.
IML
Não sei o que há
Sob a pele deste rapaz.
Vê-se que o dia, espesso,
É toda a sua pelugem,
Colorindo-lhe como uma
Plumagem, porém mais
Violenta, pois que é
Tomada por vozes.
Contudo, o que mais intriga
São as janelas abertas espalhadas
Em seu sangue,
Por onde um ar úmido entra,
Carregando o canto de um pássaro,
Feito oxigênio a invadir suas veias.
Senti-me no sopé de uma montanha.
Notou-se a existência de um ovário em seus olhos,
Ligado a um útero em sua língua,
Grotesco homem fêmeo
Fecundado pelo dia.
Diversas vezes fomos assaltados
Pelos gritos dos recém-nascidos que eram concebidos
Enquanto dissecávamos o cadáver-mãe.
Já não sei onde enterrá-lo.
Ele provavelmente comeria o cemitério.
Sugiro esquecê-lo, chutá-lo abismo abaixo,
E deixar que ele se divirta com
Sua queda anônima
E seu vôo efêmero.
Sem causa-mortis,
Sem causa-vita,
Feito um poema,
Feito um poeta, enfim.
Torcicolor
Mantinha os olhos fixos no sol,
Como que a buscar lucidez.
Estava a anos na mesma posição,
Parado, a face voltada para o céu,
Para a estrela que lhe tirara o sono.
Já não havia noite, nem haveria dia.
O sol, em eterno-meio dia,
Queimara-lhe as retinas.
Estava cego, e perseguia a luz
Como quem tem sede,
Feito um girassol.
Há anos sentara sob sua estrela,
A olhar com um sorriso bobo para o alto,
Como quem ouve uma sereia…
As crianças corriam ao seu redor,
E por vezes pensavam que era uma estátua
Até ouvirem a canção que cantarolava
Baixinho, o tempo inteiro…
A pele, tostada e seca
Estava coberta de musgo,
E um pássaro já fizera ninho
Em suas costas.
Sua barba incrustara no chão,
As mãos abertas num eterno aceno…
No fundo, o que desejava
Era o corpo do sol, num beijo.
“É uma mulher, é só uma mulher,
É só carne entranhada nessa luz”,
Repetia para o suor que brotava
Em sua pele, tentando guardar algum
Mínimo de água em si, e ao mesmo tempo
Despejando seus odres sobre a areia,
Era um suicida, um sonhador,
Um desidratado de boca aberta
Tentando engolir o calor do deserto.
E acenava um aceno bobo,
Lá do alto, era invisível,
Um ponto mínimo submerso na cidade de néon…
Fazia longos monólogos para a sua estrela,
Gritando com todas as suas forças, na esperança de ser escutado…
E falava de seus sonhos até adormecer de olhos abertos
Pois as órbitas estavam demasiado inflamadas
Para lhe permitir fechar as pálpebras.
A cidade era imensa,
A multidão lhe engolia,
Enquanto ele, estático,
Praticava o labor de todos os dias,
Comendo, indo ao banco,
Atravessando a rua carregando uma esperança
Como uma saca de farinha sobre a cabeça.
Ele murmurava seu amor,
Assombrado por luz,
O pescoço contorcido em cores,
Os olhos a sangrar.
Dói andar pelo dia a sangrar por causa do sol.
Contudo, o amor lhe fora dado assim.
Como um gato vivendo em sua barriga,
Dentro do corpo pobre
Havia outro sol que rugia
E o impelia em gravidade e combustão
Ao sol que queimava longe.
Nem enterrado, nem submerso, nem cego,
Seus olhos eternamente abertos, fixos no sol.
No sol.
No sol.
No sol, amor, no sol.
Já tentara arrancar os olhos,
Lançá-los pelo espaço, através das galáxias,
“São bilhões de estrelas”,
Repetia em meio ao cansaço da fuga,
“São bilhões de estrelas”.
Mas seus olhos, como baratas surgindo do esgoto,
Teimavam em renascer em suas órbitas.
Curandeiras, em vão, lhe vendaram os olhos.
Fingia olhar para o chão, e os que olhavam seu rosto
Nada notavam, exceto um calor muito doce vindo dos olhos…
Caminhava, vendado e prestativo,
Um homem de bem entre os guarda-chuvas.
Mas, por baixo da venda, por baixo das pálpebras,
Por baixo dos olhos de pele,
Seus olhos inflamados contemplavam, estupefatos,
Aquela estrela em eterno meio-dia.
Dentro da cabeça baixa,
Havia um homem em pé olhando para o céu,
A esticar os braços, e equilibrar-se nas pontas dos pés,
Tentando tocar o sol como quem
Apanha o fruto de uma árvore.
E ele seguia em solidão
A imaginar-se tateando o corpo líquido do sol,
A construir telescópios com sua carne,
A gritar canções para o espaço até perder a voz…
Alheio ao fogo,
O sol queimava imenso, lindo,
Como um sol, como uma catarata
Ao redor de todas as coisas.